Por Mauro Mueller / Quantum Dox

Deuses diferentes? Imagem: Grok (por Andre Wormsbecker / Quantum Dox).

Ao longo da história, o fenômeno chamado Jesus transformou todo o comportamento humano, influenciou gerações e amplificou-se de forma rápida e sólida, principalmente depois que o imperador Constantino autorizou o culto a Jesus e, posteriormente, decretou o cristianismo como religião oficial do Império Romano. A partir desses vários eventos, o catolicismo se organizou e se tornou a religião mais cultuada no mundo.

Na história, várias linhas de estudos do cristianismo se organizavam, debatiam, divulgavam e se reuniam em torno do legado de Jesus de Nazaré. Suas obras e falas espalhavam-se e eram difundidas a partir de Jerusalém, na Judeia (hoje região de Israel, Jordânia e Palestina), e também por regiões onde hoje se situam a Síria, a Turquia e a Grécia, passando por lugares como Samaria, Damasco, Antioquia, Tarso, Icônio, Listra, Derbe, Éfeso, Galácia, Filipos, Tessalônica, Bereia, Atenas e Corinto — impulsionadas principalmente pelas viagens missionárias e de divulgação do evangelho pelo Apóstolo Paulo.

Porém, além da linha cristã paulina, outros grupos se reuniam e faziam estudos sobre o cristianismo, como os gnósticos, valentinianos e arianos, que ao longo do primeiro e segundo séculos também defendiam suas teses sobre os ensinamentos, o legado e a influência de Jesus de Nazaré. Contudo, a ênfase acabou recaindo sobre o dogma do conceito paulino; isto é, o Apóstolo Paulo tornou-se o nome mais importante do que viria a ser a igreja cristã do Império Romano.

Não foi da noite para o dia que todos os dogmas e doutrinas se estabeleceram formalmente. O processo ocorreu desde o primeiro concílio em 325 d.C., em Niceia, organizado durante o império de Constantino, até o sétimo concílio em 787 d.C. (o segundo concílio de Niceia), promovido pela Imperatriz Regente Irene, do Império Bizantino Oriental. Nesses anos todos, a igreja se organizou e o clero estabeleceu os dogmas e doutrinas do que se chamou Igreja Católica Apostólica Romana. Essa é a base para toda a doutrina da fé católica até os dias de hoje. Como podemos notar, foram mais de 450 anos até que os cristãos pudessem seguir uma linha unificada de cultos e ritos, baseados no legado de Jesus de Nazaré (agora Jesus Cristo).

E quem pensava diferente? E quem não seguia as orientações desta linha de estudos? Havia grupos que não concordavam com os concílios?

A resposta é: Sim.

Muitos grupos seguiam outras linhas dentro do pensamento cristão. Existiam o gnosticismo, o arianismo, os valentinianos, o marcionismo, o marianismo e o sabelianismo, para citar os mais conhecidos. Havia também o movimento do Apóstolo Paulo (Saulo de Tarso), um ex-perseguidor de cristãos que se converteu ao cristianismo após ter uma visão numa viagem a Damasco, quando ficou cego por três dias. A data da sua conversão gira entre 31 e 36 d.C.

Vou me concentrar agora no movimento Marcionita, que foi um dos mais controversos e polêmicos da época, ganhando milhares de adeptos ao longo do segundo século d.C.

Marcião, nascido no ano 85 d.C. (quase vinte anos após a morte do apóstolo Paulo), era filho de um bispo cristão e vinha de uma família rica da província romana de Sinope; a atividade profissional da família era a navegação (eram armadores). Marcião começou seus estudos e tornou-se notório como um crítico do judaísmo ortodoxo, a ponto de querer eliminar o Antigo Testamento do movimento cristão, pois afirmava que o Deus de Abraão não era o mesmo Deus que enviou Jesus para ser o Messias. Vale lembrar que ainda não havia um cânon bíblico estabelecido (voltarei a este assunto logo).

A doutrina dualista de Marcião ganhou adeptos rapidamente, mas também criou inimizades dentro do cristianismo. A rejeição do Antigo Testamento era apenas uma das ideias polêmicas de Marcião. Para ele, o Deus de Abraão era um deus muito material, autoritário, que ordenava matanças, exigia veneração mediante ameaças e era intolerante. Esse "Deus mau", descrito no Antigo Testamento, era, segundo sua tese, o Deus da guerra.

Já o Deus de Jesus de Nazaré era bondoso, caridoso, misericordioso e benevolente, acolhendo todas as pessoas, independentemente de posição social, raça, ou se eram judeus ou gentios. Marcião admirava o Apóstolo Paulo, a quem tinha como referência, e estudou as cartas e epístolas paulinas, baseando-se muito também no Evangelho de Lucas para levantar suas teses. O Deus de Marcião era o Deus que hoje está no Novo Testamento.

Marcião participou de muitos debates e reuniões, como concílios apostólicos. Os discípulos de Jesus também faziam esse tipo de assembleia para estabelecer regras, e nós podemos ler nas cartas de Paulo várias decisões, como a aceitação de gentios no cristianismo sem a exigência da circuncisão, entre outras.

Marcião foi também o primeiro estudioso a fazer a separação de textos que depois foi chamada de cânon bíblico, tendo inclusive influenciado os demais membros do clero da época a começar a selecionar o que poderia e o que não poderia fazer parte das leituras nas igrejas e assembleias do início do cristianismo. Ele queria eliminar o estudo da Torá e os livros dos profetas por acreditar que o Deus de Abraão não era o mesmo que enviou Jesus ao mundo. Por causa dessa tese principal, seus conceitos tornaram-se muito criticados ao longo dos concílios que organizaram o cânon bíblico posterior, o qual deu origem aos dogmas e doutrinas estabelecidas pelo império no cristianismo romano.

Todos os movimentos que não se alinhavam com o pensamento cristão nos concílios romanos posteriores, organizados para estabelecer o credo apostólico, foram chamados de heresias. Gnósticos, arianos e marcionitas foram declarados inimigos, e suas heresias foram amplamente atacadas e perseguidas. Seus textos foram queimados e destruídos. O que se tem hoje a respeito da tese de Marcião são apenas textos escritos pelos líderes da patrística, que registravam suas críticas e ataques aos conceitos que ele defendia.

De acordo com o livro Neo-Marcionismo, de Julie Castin Cordeiro, também existiram muitos defensores das ideias de Marcião até séculos depois, como Adolf Harnack (1851-1930), autor de um livro em que defende a tese de Marcião (Marcião: O Evangelho do Deus Estranho) e faz críticas ao Antigo Testamento. São vários os autores e teólogos que seguem a linha do "Deus mau" do Antigo Testamento até os dias de hoje. “Um Deus que não julga é aquele que Marcião identificaria com o Deus do Novo Testamento. E o Deus mau que julga é um Deus diferente, revelado aos judeus no Antigo Testamento – o Deus Demiurgo”, escreve Julie. Notamos uma influência leve, mas presente, do gnosticismo nas declarações de Marcião, que também acreditava na presença de Jesus essencialmente em espírito, e não como um ser humano de carne e osso.

Há inúmeros críticos contemporâneos ou que escreveram contra Marcião muitos anos depois de sua morte. Muitos desses líderes chamados heréticos foram expulsos da igreja e até mortos como condenação. Marcião foi afastado da igreja em 144 d.C., e dizem que até a doação em dinheiro que ele teria feito ao ingressar lhe foi devolvida. Depois desses episódios de rejeição, viveu isolado. Não se tem notícia exata sobre a morte de Marcião de Sinope.

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