
Por Andre Wormsbecker / Quantum Dox
O Universo 25: por que o “ralo comportamental” ainda provoca arrepios
Não é todo dia que um experimento com roedores vira mito cultural, inspira manchetes apocalípticas e segue alimentando debates sobre cidades, tecnologia, demografia, saúde mental e até arquitetura. Mas foi exatamente isso que aconteceu com o Universo 25, a mais famosa das “utopias de ratos e camundongos” criadas pelo etólogo John B. Calhoun entre os anos 1950 e 1970. Nesse conjunto de estudos, os animais tinham comida, água e proteção ilimitadas. Só faltava uma coisa: espaço. O que Calhoun observou — do crescimento acelerado ao colapso social — ficou conhecido como ralo comportamental (behavioral sink).
Calhoun apresentou primeiro as versões com ratos, entre 1958 e 1962, e cunhou o termo “ralo comportamental” num artigo clássico sobre densidade populacional e patologia social. A imagem era forte: quando a densidade passava de certos limites, condutas desorganizavam-se, violência e hiper-sexualidade cresciam, o cuidado parental desabava e o grupo parecia “escorrer” para um sumidouro de disfunções. A ideia ganhou o mundo científico — e a imprensa.
Em 1968–1973, Calhoun trocou os ratos por camundongos e montou sua “cidade” mais famosa: o Universo 25. Ali, a população explodiu, estagnou e entrou em colapso, num ciclo que ele descreveu em quatro fases (A a D). Primeiro, adaptação. Depois, exploração de recursos e crescimento vertiginoso. Em seguida, estagnação, com disputas, retraimento social e mães que abandonavam ninhadas. Por fim, a fase da morte: os nascimentos rarearam, alguns machos — apelidados por Calhoun de “os belos” (beautiful ones) — apenas comiam, dormiam e se auto-limpavam, sem acasalar. Mesmo quando removidos para ambientes “novos”, não readquiriam comportamentos sociais complexos. A população, embora saudável fisicamente, perdeu a “aptidão cultural” e caminhou para a extinção.

Essas descrições chocantes viralizaram — primeiro em revistas e jornais, depois em livros, quadrinhos, filmes e, décadas mais tarde, na internet. Pesquisadores em história da ciência mostraram como a expressão “ralo comportamental” saiu dos artigos para a cultura pop, moldando o imaginário sobre cidades decadentes e a ameaça da superlotação. Calhoun, com seus termos cinematográficos (“delinquentes juvenis”, “bêbados de bar”, “belos”), ajudou a criar pontes entre laboratório e metrópole — algo que rendeu influência, mas também críticas.
O que o Universo 25 é — e o que não é
Em ciência, o Universo 25 é um modelo de laboratório poderoso para estudar como densidade e organização espacial afetam movimentos, agressão, reprodução e cuidado parental em roedores. É evidência de que recursos materiais abundantes não bastam quando a estrutura social e o uso do espaço se desorganizam. Calhoun sugeriu que, sem rituais de acasalamento e hierarquias estáveis, uma sociedade pode perder habilidades cruciais de transmissão comportamental entre gerações. Esses achados estão documentados nos próprios artigos do autor, como Population Density and Social Pathology (1962) e Death Squared (1973).
Mas aqui vai o freio de mão: extrapolar roedores para humanos é altamente controverso. Desde os anos 1970, pesquisadores como Jonathan L. Freedman vêm mostrando que, em pessoas, densidade por si só não determina colapso. Contexto importa: privacidade, controle, normas, arquitetura, vínculos sociais e propósito podem amortecer (ou até reverter) efeitos de alta densidade. Revisões posteriores reforçaram que “estar comprimido” não é destino; é mediação — e sociedades humanas têm cultura, linguagem, regras e instituições que mudam o jogo.
Por isso, quando versões virais nas redes usam o Universo 25 como “prova” de que a sociedade humana está condenada, faltam nuances. Checagens independentes lembram que os resultados não significam que “o Ocidente está morrendo” ou que “cidades levam inevitavelmente à degeneração”. O próprio histórico da pesquisa inclui tentativas de mitigação (p. ex., reorganizar pontos de alimentação para reduzir aglomerações crônicas e impedir a formação do ralo), além de aplicações em projeto urbano e desenho de prisões, onde a distribuição do espaço reduz conflitos.
Por que ainda nos fascina?
Porque o Universo 25 é uma parábola moderna sobre ecologia do comportamento: mesmo em “utopia material”, padrões invisíveis de ocupação do espaço, tráfego social e aprendizado social podem implodir competências de uma população. E porque nos força a pensar em qualidade das interações — não apenas em quantidade de gente por metro quadrado.
Historiadores da ciência mostram que o impacto de Calhoun foi duplo: científico e simbólico. A expressão “ralo comportamental” virou um ícone cultural (Tom Wolfe a celebrizou no jornalismo literário), e a experiência em si passou a alimentar narrativas — algumas produtivas, outras alarmistas — sobre megalópoles, alienação e “fim da civilização”. Ao mesmo tempo, uma leitura mais atenta do legado científico indica que o desenho do ambiente (privacidade adequada, rotas de fuga social, microterritórios) pode evitar o afunilamento comportamental.
O que fica para hoje
Para quem pesquisa cidades, escolas, plataformas digitais ou organizações, o ponto não é repetir a profecia do colapso, e sim projetar arranjos sociais que distribuam interações e protejam rituais de competência (ensinar-aprender, colaborar-competir com regras, cuidar-ser cuidado). É integrar arquitetura, psicologia ambiental e governança para impedir “zonas-ralo” onde tudo converge e degrada. Foi nessa linha que muitos urbanistas e designers de ambientes institucionais passaram a citar Calhoun — não como veredito fatalista, mas como alerta de projeto.
E para quem consome informação na era das hiper-aglomerações digitais: densidade de estímulo sem filtros, pausas, fronteiras e propósitos também produz “ralos” — timelines que puxam tudo para um centro ruidoso. A lição do Universo 25, traduzida para 2025, é cultivar higiene de atenção, espaços de privacidade e rotinas culturais que mantenham viva a transmissão de habilidades entre gerações.
Em resumo: o Universo 25 é um espelho — distorcido e útil — para pensar como configurações de espaço e interação moldam comportamentos. Calhoun exagerou ao aproximar demais ratos e humanos? Provavelmente, sim. Mas o alerta sobre projeto de ambientes e densidade de relações continua valendo — e é aqui que o debate fica realmente fértil.
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